Saramaguiana
por José Saramago 19 Setembro 2023

José Saramago: Carta aberta a Salvador Allende

Texto publicado pela primeira vez na edição de 7 de Agosto de 1975 do Diário de Notícias, e posteriormente incluído no volume Os Apontamentos.

Dirigimo-nos a ti, companheiro presidente, porque estando morto tens a melhor das razões para não responderes, como a não têm outros que vivos igualmente não respondem. Quereríamos nós que ao menor suspiro ou reparo neste lugar formulados se desacomodassem os destinatários para nos virem dar troco, ponto por ponto, assim nos reconhecendo e dando importância? Nem por sombras. Quereríamos sim não ter de repetir infinitamente as mesmas palavras de aviso e de caseiro bom senso, do qual afinal vamos duvidando, porque ou as orelhas são moucas ou loucas as palavras. Mas a ti, que morto estás, e surdo, e mudo, e cego, podemos escrever esta carta para desabafar um pouco, cientes de que, com a experiência que tiveste, estas coisas te são familiares, de tal maneira que só por absoluta impossibilidade nos não responderás. E assim perdemos nós a esperança de um interlocutor. Companheiro Allende, isto por cá vai mal. Tão mal que vindo a comparar com o Chile do teu tempo francamente nos espantamos de quanto conseguiste, pois menos apoio tinhas (muito menos) do que já tiveram estes homens portugueses do poder, os militares, porque dos civis não falamos, que em rigor o não têm, ou fugidio apenas — ainda mais. E damo-nos ao sabor de pensar, de imaginar que jornada teria sido a tua e a do povo chileno se tão aberto houvesses tido o caminho como este esteve. Hoje a tua terra não seria o lugar eleito de tortura e repressão que é: antes seria pátria de uma fraternidade maior, um outro ponto do mundo em parto de liberdade e de libertação de todas as explorações. Decerto erraste algumas vezes, faltou-te decisão quando necessária era — mas o desastre, hoje conhecido na sua exacta dimensão, é muito mais trágico do que os erros e as indecisões fariam esperar. A felicidade é difícil, Salvador Allende, a desgraça instala-se sempre para durar. Muitas vezes aqui nos interrogamos como foi que, parecendo tudo tão fácil, Portugal veio a tornar-se neste quebra-cabeças (que o é em literal e em figurado…), e, postas de lado, por óbvias, as intervenções de fora (o imperialismo e os seus instrumentos social-democratas), viemos a concluir que quando o Povo Português estava pacificamente disposto a ir para o socialismo, não o estavam clarificadamente os militares, e quando estes enfim se decidiram e compreenderam, outra gente espertíssima encontrara e começara a usar os métodos de dividir o povo. Sem falar, claro está, de todos os erros cometidos, alguns uma e muitas vezes, com uma espécie de cegueira muito pior do que a tua. Porque tendo na tua terra acontecido o que todos sabemos, ninguém aqui mostrou ter aprendido nesse livro de uma revolução degolada, ninguém veio a ser capaz de interpretar a lição escrita nas linhas do teu rosto morto.

Dissemos que esta carta aberta era um desabafo. Não é mais do que isso. Seguindo outros antigos exemplos, poderíamos escrevê-la a Santo António, que se dirigiu aos peixes porque o não ouviam os homens. Porém, isso são lendas que só encontram crédito nos inocentes que em tudo vêem o dedo divino. Muito bem sabes tu, e nós sabemos, que a tua morte foi obra de homens, que é obra de homens a opressão a que o teu povo está sujeito. Mais vale, pois, que o diálogo se tente entre homens, nós vivos neste Portugal aflito, e tu morto, Salvador Allende, enterrado num lugar da tua terra chilena que espera a libertação. Isto por cá vai mal, companheiro. São muitas as nossas dificuldades e muitos os nossos inimigos. Também os tiveste com fartura e deles morreste. Aqui, país que parece ter escolhido definitivamente o sebastianismo, julgámos que tudo se faria entre cravos e canções. Não sabíamos que o socialismo é difícil e não aprendemos nada com a tua morte. Perdoa-nos por isso. Claro que não estamos desanimados, muito menos vencidos, mas achámos que escrever esta carta nos faria bem. E realmente sentimos agora aquela grande serenidade de quem sabe estar na boa razão. Obrigado, companheiro Salvador Allende.