Que não morram os meus escritores mortos
No começo do mês, o escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez publicou no El País um texto de opinião sobre o que fazer com as obras póstumas de escritores. Dias antes, os herdeiros de Gabriel García Márquez tinham tornado público que publicarão um livro inacabado do autor de Crónica de uma morte anunciada. Em 2014, quatro anos depois do falecimento de José Saramago, foi publicado o seu também inacabado romance Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas.
Como ajuda ao debate sobre como se deve cuidar o legado de autores e autoras que já não estão, e com a autorização do autor, a Blimunda publica neste seu número de maio o texto de Vásquez traduzido para o português.
Quando a Feira do Livro de Bogotá estava prestes a acabar, uma leitora de uns 70 anos quis saber a minha opinião sobre a notícia que acabávamos de receber: no próximo ano será publicado um romance inédito de García Márquez. Trata-se de En agosto nos vemos, um manuscrito de que muitos tínhamos ouvido falar: García Márquez passou anos dando voltas àquela história e inclusive chegou a ler algumas das suas páginas numa das raras aparições públicas, mas não conseguiu terminá-la antes de que a sua memória fosse estragada pela doença. Este romance foi uma das últimas tentativas que fez para vencer as suas próprias limitações; no entanto, ainda que nos últimos anos da sua vida tenha terminado as suas memórias e um relato breve, a forma final de En agosto nos vemos continuou a fugir-lhe. Escrever ficção, e sobretudo essa forma tão exigente de ficção que é um romance de certa complexidade, é impossível sem memória.
Pois bem, a leitora da feira opinava que o romance não deveria ser publicado. Se García Márquez não o publicou em vida, se não o terminou por não saber como fazê-lo, teríamos nós o direito o conhecer? Não seria isso violar a vontade do escritor? Esta leitora indignava-se pelas imbecilidades em série cometidas recentemente por editoras em língua inglesa contra livros de autores como Roald Dahl, Agatha Christie ou o pobre Ian Fleming, e perguntou-me por que, se condenamos esses atentados contra as palavras de um autor que já não se pode defender, nos pareceria bem que se publique o que um autor não tornou público. Pareceu-me um argumento inteligente; o facto simples de que esta mulher se colocasse do lado dos autores mortos, e portanto contra a estupidez reinante no nosso mundo, pareceu-me comovedor e ter-lhe-ia dado toda a razão. Porém, nesse caso não pude fazê-lo, porque a notícia sobre a publicação do livro tinha-me enchido de alegria e teria sido uma hipocrisia da minha parte dizer qualquer coisa contrária a isso.
Sim, agradeço que se publique esse romance. Ainda que esteja incompleto, ainda que García Márquez não tenha sabido como terminá-lo, ainda que não tenha autorizado a sua publicação. Disse-lhe, à leitora, que justamente por todas essas carências, nos caberia a nós, os leitores de García Márquez, saber como ler um livro assim: saber, enquanto o lemos, que não é um livro definitivo e que não pertence, portanto, à mesma ordem das coisas dos romances que García Márquez publicou em vida. Por outras palavras, cabe-nos, a nós, ajustar as lentes de leitura, mas nunca me pareceu preferível ser privado do contato com a obra inacabada de um grande artista. Nem vou falar do carinho que tenho pelos esboços de esculturas de Miguel Ângelo; justamente por estarem inacabadas é que são uma maravilhosa janela com vista direta para a oficina. Limitemo-nos à literatura para recordar o que eu disse quando apareceu um romance de Hemingway quase reescrito pelo seu filho, por exemplo, ou essa novela de Louis-Ferdinand Céline: a obra extraviada de um antissemita que, apesar de ser antissemita, era um enorme escritor. Em todos esses casos disse o mesmo que digo agora: dêem-me o livro que eu decidirei como devo lê-lo.
Não acho que possa dizer o mesmo sobre todos os autores, mas García Márquez não é só mais um: é um escritor que transformou para sempre a minha maneira de me relacionar com o meu país e, além disso, ao lado de mais sete ou oito escritores, transformou a nossa língua, a nossa tradição e a cultura do nosso continente latino-americano. Nestes dias tenho pensado bastante sobre o assunto, porque faz mais ou menos 60 anos que começou tudo isto a que agora chamamos de “boom latino-americano”. Mas quando foi exatamente? Alguns dizem que foi com a publicação de A cidade e os cães, romance de um peruano muito jovem que recebera naquele ano de 1962 o prémio Biblioteca Breve. Outros, que foi com a extraordinária coincidência de, num espaço de poucos meses, serem publicados O século das luzes, A morte de Artemio Cruz e Rayuela/O jogo do mundo, que apareceram a meio de 1963. Os historiadores da literatura escreveram até à saciedade sobre esse fenómeno, mas ainda não conseguiram colocar-se de acordo sobre o momento preciso em que aconteceu o que aconteceu.
E o que foi aquilo? O que é que aconteceu? Obviamente, não foi a ficção latino-americana, que já tinha produzido um punhado de obras inaugurais no primeiro quarto de século e vinha inventando maravilhas pelo menos desde os anos 40, quando Borges publicou Ficções e O Aleph. Dos anos 50 chegaram milagres como A vida breve, de Juan Carlos Onetti, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo; quando aquele peruano muito jovem recebeu o já mencionado prémio, os contos de Bestiário já tinham aparecido e também romances como A região mais transparente e Ninguém escreve ao coronel. De modo que não é que tenha sido criado um universo onde só havia um vazio, como tantos leitores desatentos acreditaram. E, no entanto, no começo de 1963 as pessoas percebiam que algo acontecia pela primeira vez, ou que algo estava a transformar-se de maneira tão notória que era difícil não ceder à impressão que os momentos fundadores provocam.
Eu sou filho dessa transformação. E esses livros são parte da paisagem mental de qualquer um de vocês, leitores da minha língua, e falamos deles como se fala sobre os clássicos, porque isso é o que, sem dúvida, eles são. Digo mais: esses escritores e esses romances tornaram-se presenças quotidianas e acostumamo-nos tanto à sua companhia que é fácil esquecer a profunda revolução que constituíram naquela altura. Já disse mil vezes que daria tudo para voltar a ler Cem anos de solidão novamente pela primeira vez novamente. Essa deve ser a maior frustração de quem é um leitor dedicado, porque é realmente o único desejo impossível: nunca se volta a descobrir o que já se descobriu. Na verdade, o meu desejo maior seria ler Cem anos de solidão pela primeira vez, mas, além disso, fazê-lo em 1967, nesse mundo onde aquele romance apareceu para surpresa de todos e colocou tudo de pernas para o ar levando o seu título a passar de boca em boca com a velocidade de uma calúnia.
Talvez tudo isto que escrevo não seja mais do que uma forma elaborada de agradecer a futura publicação de En agosto nos vemos, agradecer que a mim, que cresci como leitor e romancista num mundo onde estes nomes publicaram os seus livros, me deixem continuar a ter o imenso prazer – ou o descobrimento privilegiado – dos seus livros desconhecidos. Eu era apenas um menino quando Cortázar morreu e um adolescente quando morreu Borges, mas as mortes de Fuentes e a de García Márquez surpreenderam-me com plena consciência do vazio que se nos abrirá quando o último dessa geração, Vargas Llosa, também deixar de estar. Um escritor morre duas vezes: quando morre e quando deixamos de o ler. E eu não quero que os escritores que me importam me continuem a morrer depois de mortos.