María Kodama e o amor com Borges
A escritora, tradutora e guardiã da obra de Jorge Luis Borges, María Kodama, morreu no passado dia 26 de março, aos 86 anos, em Buenos Aires. Em 2008, ela esteve em Lanzarote e participou numa conversa com José Saramago (que se repetiria alguns dias depois em Lisboa) a propósito da obra do escritor argentino. No livro A intuição da ilha (Porto Editora, 2022), Pilar del Río recorda a passagem de Kodama pela ilha.
Borges era um autor fundamental para José Saramago como fica registado nas suas declarações — tantas — e também na sua obra. O romance O Ano da Morte de Ricardo Reis é atravessado por um livro inexistente, O Deus do Labirinto, de um autor inventado por Borges e lido por Ricardo Reis, que tão-pouco existia, salvo como heterónimo de Fernando Pessoa. José Saramago atreve-se a pôr em diálogo Pessoa e Borges através da ficção e de alguma maneira aparece uma trindade literária à espera de novas leituras.
María Kodama viajou para Lanzarote e na biblioteca de A Casa falou do escritor que conhece tão bem e do homem com quem partilhou a vida e que nela continua a estar porque há presenças que não são esquivas. O encontro marcado era com José Saramago que por aqueles dias se recuperava de uma doença que esteve a ponto de lhe custar a vida. Para trás ficavam meses internado num hospital de Lanzarote, dias e noites de soçobro em que deixou claro que ainda não queria morrer e não morreu. Agora é março de 2008, María Kodama chegou a Lanzarote para ver o seu amigo e ambos se dispõem a dialogar sobre Jorge Luis Borges na biblioteca de A Casa. É o primeiro acto público do escritor depois de sair do hospital. Chegarão a Tías amigos de toda a ilha, ninguém quer perder a conversa entre os dois leitores privilegiados de Borges, dois escritores capazes de entrar nos labirintos e sair deles vivificados. María Kodama e José Saramago frente a frente, rodeados de livros, vida e paixão partilhadas.
Começam a sessão, os teóricos da sala esperam impacientes, vão assistir a um acto em que se desvelarão as chaves do enigma borgiano, a teoria da literatura crescerá diante dos seus olhos, mas isso não acontece. A primeira pergunta que o escritor faz à escritora não tem a ver com arcanos literários, simplesmente pede-lhe que fale do amor com Borges. María ri-se, não está nervosa, pelo contrário, relaxa-se mais no cadeirão de couro negro e com voz suave, como o meio da tarde dessa primavera lanzarotenha, vai conduzindo os seus ouvintes pela intimidade da convivência, as aventuras quotidianas de quem nunca perdeu a curiosidade, os momentos de alegria, as viagens por ilhas remotas, com idiomas e lendas fascinantes. Kodama reproduz o você acariciador com que Borges e ela se tratavam, aparece a Suíça, a última paragem, os amigos, hoje Lanzarote é o Aleph. «Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do globo», dizem, repetem. María Kodama olha para José Saramago que olha para ela. Decidem ler o mestre em voz alta, não é uma invocação, é o prazer de escutar. María lê com sotaque portenho, a sua voz vai parecendo a de Borges. Ninguém se mexe na biblioteca, nem sequer a biblioteca levita, ninguém quer que passe o tempo, nem quando Saramago lê como se Borges fosse português, e talvez essa tarde o fosse.
María Kodama passou vários dias em Lanzarote, percorreu a ilha, viu os vulcões, molhou os pés na água deste lado do oceano, conheceu a obra de César Manrique, despediu-se até à próxima, que seria em Lisboa, e foi. Antes, em Buenos Aires, María Kodama tinha mostrado a José Saramago a biblioteca de Borges, os livros que o acompanharam e nos quais deixou a sua respiração, os livros que escreveu para dar alento a outros, a mesa que usava, a sua cadeira, alguns objectos, o silêncio da criação. María Kodama e Jorge Luis Borges viveram juntos muitos anos. Nunca se separaram. No seu livro Homenagem a Borges, entendem-se as chaves de uma história que superou todas as barreiras. «Maria, fala-nos do amor com Borges». Ela é a única pessoa no mundo que pode fazê-lo e em Lanzarote, naquela tarde de março, com José Saramago como anfitrião, desfolhou a mais bela declaração. Entendê-lo-ão os que de amor algo saibam.