Aqueles dias em Estocolmo
Neste mês de dezembro, quando passam 24 anos sobre a data em que José Saramago foi a Estocolmo receber o Prémio Nobel de Literatura, a Blimunda publica uma crónica do jornalista mexicano Pablo Espinosa, testemunha daqueles dias na Suécia, que integra o livro Saramagia – reunião de uma série de textos em homenagem a Saramago publicado agora no México.
Dezembro de 1998. Estocolmo. Semana de celebrações do Prémio Nobel.
Por onde passa, José Saramago vê-se envolvido num turbilhão de cumprimentos e aplausos, sorrisos, abraços e livros seus em sueco, que assina enquanto conversa com o portador do volume. Sou o único repórter latino-americano enviado para cobrir este relevante acontecimento. José, como é chamado carinhosamente, pousa a sua grande mão sobre o meu ombro e conduz-me numa caminhada. Faço uma piada: “José, o teu casaco é igualzinho ao do John Lennon no famoso concerto de Let it Be no terraço”. Ele ri enquanto ajeita os cabelos despenteados pelo vento gelado da capital sueca.
São muitas as atividades da Semana Nobel. A mais divertida de todas: quando os premiados passam uma manhã inteira ensaiando o papel que devem cumprir na cerimónia com os reis suecos. Sempre o centro das atenções por onde passa, Saramago exibe o seu sorriso de criança iluminada, gentilmente divertido, sobretudo quando quem exerce de mestre de cerimónias no ensaio faz o papel do rei, simulando com os galardoados o protocolo, formalíssimo, enquanto os premiados em Física confundem as mãos com que devem receber a medalha, o diploma e cumprimentar o rei, ou os laureados em Medicina dão voltas no sentido contrário ao que devem e saem em caravana na direção errada.
Numa dessas manhãs em Estocolmo o pequeno cortejo que acompanha Saramago chega à Aula Magna da Universidade de Estocolmo para acompanhar uma conversa de hora e meia com várias centenas de universitários suecos e latino-americanos: Porque escrevo como escrevo? Começa Saramago, e responde-se: porque assim falo.
Do campus nevado da universidade ao interior de um amplo e confortável auditório, chama atenção o calor do convite: um encontro entre o escritor lido e admirado por muitos suecos com os seus leitores cheios de simples mas sábias perguntas.
Nas colunas de som do auditório toca um disco: O paraíso, do grupo português Madredeus. A voz de Teresa Salgueiro serve de preâmbulo para uma longa e interminável ovação de pé que o romancista recebe ao entrar e que é respondida com abraços e beijos emocionados lançados ao ar.
«Escrevi (Levantado do Chão) a partir do material que recolhi entre camponeses, onde a cultura é transmitida principalmente de maneira oral, a partir do que as pessoas narram. Para além de, nessa época, quase todos serem analfabetos, a comunicação era oral. Contos, lendas, refrões, toda a sabedoria viva e articulada era comunicada verbalmente. Por isso quando me perguntam porque escrevo assim, respondo: porque assim falo. Criar mais sinais de pontuação seria aumentar a confusão, os meus, em todo o caso, não são sinais de pontuação senão de pausa. A minha intenção é introduzir na cabeça do leitor o silêncio.»
O auditório explode novamente numa amorosa e longa ovação. Saramago recebe uma flor dentro de um vidro com a data e o seu nome gravados. Distribui mais apertos de mãos, abraços e beijos enquanto abandona a Aula Magna, que é invadida, novamente, pela voz de Teresa Salgueiro.
Outro epicentro da Semana Nobel: o discurso de aceitação do prémio, pronunciado no dia 7 de dezembro na sede da Academia Sueca, diante de centenas de pessoas e durante uma hora e meia. Narra, em português, a sua vida inteira, a partir destas palavras:
«O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.»
O relato mantém em suspense, em estado de devaneio, os presentes.
Continua a Semana Nobel em Estocolomo. Agora é de noite. Nos arredores da Konserthuset, a Sala de Concertos de Estocolmo, é um desfile de roupas, fraques, limusinas e um par de manifestações pelos direitos humanos. Dentro da sala, mil e oitocentos convidados distribuídos em poltronas, mil e oitocentos privilegiados: a duquesa de Halland, o presidente de Portugal, representantes da nobreza sueca e de outros países, embaixadores, sheiks, emires, princesas, príncipes, figuras públicas, industriais, influentes, militares, rajás, vice-ministros, mulheres da famílias nobres, com títulos, honorées, pedigrees, mulheres belas cuja primeira cocó foi feito em fralda de seda, senhores de cartola, diamantes pendente nos pescoços delas, condecorações penduradas nos pescoços deles, cônsules, honorários e honoríficos, governantes, poderosos. Parecem pessoas saídas de As Mil e Uma Noites. E também alguns simples mortais.
Se a fachada exterior do Konserthuset está iluminada, a maneira de ressaltar a beleza da arquitetura interior do recinto é feita por meio da nudez das paredes, salpicadas de tapetes artísticos desenhados por Einar Forseth (1892 – 1988), em homenagem a Alfred Nobel, falecido a 10 de dezembro de 1901 em San Remo, Itália – razão pela qual os prémios são entregues nesse dia. As colunas, paredes e proscénio exibem um sorriso de oito mil e quinhentos cravos em tom laranja, 1300 gladíolos, 1000 açucenas lilases e outras centenas de flores de cor laranja e amarela. Mas entre todas uma era a mais bela: a flor vermelha, o cravo que a mão esquerda de Pilar del Río segurava, na sexta fila, enquanto a direita abanava um leque. Somente ela e o seu marido, o principal laureado, sabem o significado mais profundo de um cravo vermelho, um leque e um sorriso cúmplice que ilumina a noite, que já de si mesma era luminosa.
Foi apenas um sorriso, acesso no momento de receber a medalha e o diploma, o romancista em toda a primeira parte da sua longa noite. Sentado no semicírculo de académicos suecos e laureados do mundo, o autor de Todos os Nomes parecia uma pessoa melancólica, na melhor tradição portuguesa, e não um escritor que tinha chegado no lugar mais alto. Uma vez concluída a cerimónia, diz-me ao pé do palco: “Não, a vida continua, nada mudou; não começa neste momento nenhuma nova época para mim, tudo continua igual. Agora mesmo, depois de todas essas festas, volto à vida normal, e a vida normal é a vida de trabalho, e já faz dois meses que não escrevo. Há um romance novo entre os meus projetos, A Caverna, mas está lá, à minha espera, do que preciso agora é de tempo para trabalhar”.
Na saída do Konserthuset o escritor mistura-se, como aconteceu nesses dias em Estocolmo, novamente com as pessoas. Assina livros, conversa, exulta à sua maneira: “As minhas alegrias são sempre sóbrias”.
Depois dessa noite José Saramago e Pilar viajarão para Lisboa, onde a pátria do escritor lhe prepara grandes homenagens, antes do aguardado retorno à casa em Lanzarote, ao trabalho, à escrita.
Antes disso, o jantar de despedida que o rei Carlos Gustavo e a Rainha Sílvia ofereceram aos premiados. Pilar del Río exibe um vestido com uma mensagem íntima, uma frase tirada do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, bordada ao redor da bainha, que diz: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”.
Terminada a cerimónia, são levados a um palácio antigo, o Royal City Hall, onde será servido o banquete para reis e laureados, nobres e plebeus.
Para começar, um aperitivo: “Fonds d´artichaut marines et garnis aux crevettes, aux ecrevisses et au fenouil”, depois o prato principal, entre champanhe, vinho, creme de licor e conhaque francês, e por fim uma sobremesa espetacularmente servida em três cronometrados minutos, de forma orquestrada, porque a Stockholm Sinfonietta, dirigida por Cecilia Rydinger, executa uma valsa de Strauss, da mesma maneira que a Royal Stockholm Philharmonica Orchestra, dirigida pelo britânico Andrew Davis, tinha feito soar a música de Mozart enquanto os nove premiados desfilavam até ao pódio: à frente, sempre, José Saramago, seguido pelos premiados em Física: Robert F. Laughlin, Horst Stormer e Daniel Tsui; os galardoados em Química: Walter Kohn, ausente por problemas de saúde na família e representado pelo colega, também premiado ex aequo, John Pople; os três prémios Nobel deste ano em Medicina: Robert Furchgott, Louis Ignarro e Ferid Murad, e o ganhador em Economia: Amartya Sen.
Antes da sobremesa, a voz, as palavras em português de José Saramago fazem da festa apelo às consciências:
“Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.”