As várias vidas de um texto — Entrevista a Alejandro García Schnetzer
Neste mês de janeiro chegam às livrarias brasileiras, e em breve às portuguesas, dois álbuns com textos de José Saramago. A ideia de convidar os ilustradores Armando Fonseca e Yolanda Mosquera para trabalharem a partir de palavras do escritor português foi de Alejandro García Schnetzer. Há décadas, o editor argentino radicado em Barcelona dedica-se a apresentar novas possibilidades de leitura de autores consagrados. Nesta entrevista à Blimunda, Schnetzer revela um pouco mais sobre Uma Luz Inesperada e O Silêncio da Água, os dois livros que a Companhia das Letras publica agora no Brasil assinalando o início das comemorações do Centenário de José Saramago.
Uma Luz Inesperada é um texto de José Saramago publicado nos anos 70 como crónica no livro A Bagagem do Viajante. Qual o caminho até ser transformado num álbum ilustrado?
A história do caminho de Azinhaga a Santarém foi contada por Saramago em várias ocasiões. No princípio considerámos trabalhar com a versão mais tardia, recolhida n’As Pequenas Memórias, de 2006. Mas, finalmente, optámos por esta incluída em A Bagagem do Viajante, de 1973, com o título «E também aqueles dias». A crónica, soube tempos depois, foi publicada pela primeira vez no dia 23 de abril de 1972 no Jornal do Fundão. Portanto, em 2022, no Dia Internacional do Livro, o texto completará meio século de vida. O texto parece-me uma fábula universal, poderia ter acontecido em qualquer tempo e lugar, o que amplia naturalmente as possibilidades da sua representação.
Armando Fonseca é um jovem ilustrador mexicano. Como foi que chegou até ele? O que pode dizer do seu trabalho?
Armando conta que nos conhecemos rapidamente há dez anos na Cidade do México num encontro para analisar portfolios de estudantes de ilustração. A única coisa de que me lembro desse dia é de que estava sentado ao lado de Manuel Monroy e que havia uma grande fila de pessoas que nos queriam mostrar os seus trabalhos. O Armando estava lá, embora a minha amnésia tenha apagado esse encontro, e contou-me que lhe disse que não era necessário fazer qualquer comentário sobre o seu trabalho, que ele não precisava de nenhuma indicação. Comemoro que anos depois os nossos caminhos se tenham cruzado novamente e mantenho o que lhe disse. O trabalho do Armando fala por si, entendeu rapidamente os grandes mestres sem copiá-los e deu início ao seu próprio caminho ao lado de Amanda Mijangos, que é uma artista gráfica de enorme talento também. Em algum momento vi as anotações do Armando para Uma Luz Inesperada, eram reflexões subtis sobre a memória, a infância, a natureza; ou seja, filosofia. E percebi que ele estava no caminho certo.
Este livro guarda algumas semelhanças com O Lagarto, ambos são textos publicados em jornais, como crónicas, recolhidos em livros de crónicas de José Saramago, e agora publicados de forma autónoma e com novos significados acompanhados de ilustrações. Podemos pensar que a etiqueta de crónica, conto, relato, é mera formalidade?
Sim, são formalidades, utensílios platónicos ao serviço da circulação e da classificação textual. Mas não são singelos nem inocentes, são parte de uma longa tradição do impresso. A questão é que no momento de se pensar um projeto essas formalidades não são necessariamente relevantes. O que determina a possibilidade inicial de um projeto, acho eu, são as qualidades para conseguir alguma emoção estética ou intelectual. O facto de um texto adquirir, ou que lhe imponham a etiqueta de crónica, discurso, carta ou conto para adulto, constitui uma figuração parcial e transitória da sua identidade, capaz de abrigar uma trajectória própria: um mesmo texto pode encarnar como apontamento pessoal, crónica jornalística, artigo num livro, álbum, curta-metragem, peça de teatro etc. O Lagarto foi tudo isso que acabo de dizer.
A ideia de livros ilustrados ainda hoje é associada à literatura infanto-juvenil? É uma maneira de aproximar os mais jovens da obra de Saramago?
Sim, temo que é outro velho mal-entendido que faz parte de um conjunto maior de agressões que a cadeia do livro sofre. Entende-se muitas vezes a ilustração como um componente inferior que está ao serviço do texto e cuja função é simplesmente servir-lhe de lenitivo à leitura. A consequência disso tudo é uma aterrorizante oferta de livros cuja retribuição ao trabalho do ilustrador gráfico é ínfima. Em relação à aproximação, estes livros têm como público pessoas de 4 a 99 anos, qualquer pessoa que se emocione com eles pode considerar-se jovem.
Também será publicado agora no Brasil, e em breve em Portugal, uma nova edição do livro O Silêncio da Água, com ilustrações de Yolanda Mosquera. Quais as novidades dessa edição?
Na minha opinião é uma nova proposta de leitura, distinta da de Manuel Estrada, de cuja edição estive a cargo há 12 anos. Cada leitura é única, isso é verdade, muda de pessoa para pessoa, mas um texto também muda quando mudam a forma de como ele é oferecido à leitura. Nesse sentido, Yolanda Mosquera alcançará “o esplendor do verdadeiro”, idealizou um traveling, um plano sequência exemplar, e digo exemplar porque passará o tempo e a sua proposta confirmará que é um acerto, fruto de múltiplos assombros. Involuntariamente, o seu trabalho constitui um díptico com Uma Luz Inesperada: diurno e crepuscular o trabalho de Yolanda, crepuscular e noturno o de Armando, ambos coincidem em duas precoces lembranças de Saramago, duas memórias do absoluto.