O Gnu e o Texugo
Cuidado com o vento
Ana Pessoa
Madalena Matoso
Planeta Tangerina
Uma história interminável nunca acaba, é condição indispensável. Como se opera tal feito? Basta recordar a sensação do leitor perante o final feliz: que frustrante que é despedir-se das personagens logo agora que vai começar a correr tudo bem! Pois que se continue, até novo conflito, novo drama, novos protagonistas que vão entrando de mansinho. Prescindindo da vitória final, a narrativa vence o leitor pelo cansaço e consequente desinteresse. Acabará.
Outra hipótese, bem mais sugestiva, é a que nos apresenta a dupla Ana Pessoa e Madalena Matoso e que por fim deixa justamente nas mãos do leitor as possibilidades e o tempo de reinvenção da sua história. Para isso, nada como a simplicidade do texto, reduzido a frases curtas, descrições elementares, uma sucessão sintética de acontecimentos e um contexto visual ora particular, ora geral ou indutivo. Os ingredientes, meticulosamente escolhidos, serão dispostos numa determinada lógica e… eis uma narrativa funcional, lúdica e quiçá até um pouco desconcertante. Tudo por culpa do poder do vento que arrasta os mais incautos.
Um gnu distraído não presta atenção às palavras sábias de um pinheiro. Assim, vai parar ao outro lado do vento onde trava contacto com um simpático texugo. Depois de uma amistosa refeição o gnu prepara-se para regressar a casa e a narrativa poderia quedar-se assim. Valeria pela aventura, pelo imaginário, pela imagem poética da viagem e do desconhecido, pelo humor das personagens ingénuas. Igualmente, pela expressividade das cores fortes, pelos contrastes vibrantes, pelas geometrias recortadas.
O twist acontece quando o próprio livro entra na sua narrativa e se transforma em personagem. A causa e a consequência são as mesmas: “Este livro foi pelos ares. Andou às voltas e às voltas, e ficou todo baralhado.” Então tudo se repete, as ilustrações e o texto. Mas, como indica a frase prévia, noutra ordem. Só lendo nos apercebemos que este recomeço é também um desafio, como se cada um pudesse jogar às cartas com as páginas do livro e o pudesse reorganizar a seu belo prazer. Nada é descurado: não só a ordem se altera como o próprio lugar das frases nas páginas e a orientação das imagens. Constatamos, pela composição e disposição, a ação do vento e como o livro ficou, efetivamente, baralhado nos seus elementos.
Da lógica do segundo episódio, é difícil avaliá-la sem a relacionar com o anterior. Tudo isto contribui para uma abertura de sentidos proporcionados pelo lúdico, o desconcerto, o inesperado e uma atenção profunda sobre as possibilidades do objeto enquanto matéria de significação. O final aberto reitera-o e assinala, uma vez mais, a densidade que se opera no pensamento e na criação estética e literária.