Tempo sem ordem
O Regresso de Júlia Mann a Paraty
Teolinda Gersão
Porto Editora
O mais recente livro de Teolinda Gersão apresenta-se como um conjunto de três novelas relacionadas entre si, ainda que passíveis de autonomia na leitura. Atravessadas as 140 páginas que as compõem, percebe-se que talvez faça sentido assumir estes três blocos como partes de um romance, já que não é apenas a relação temática e a partilha de personagens que os une. Há uma estrutura maior que se apreende à medida que a leitura avança e que certamente compõe uma unidade, visível no modo como as muitas linhas narrativas se vão entretecendo e ignorando as barreiras que dividem os três textos.
A abrir, é Sigmund Freud quem toma a palavra. «Freud pensando em Thomas Mann em Dezembro de 1938» assume o criador da psicanálise como narrador e coloca-o em Londres, perto do fim da sua vida, num monólogo interior que começa por situar o ar do tempo, adentrando-se, aos poucos, numa reflexão sobre Thomas Mann e a sua vida psíquica. Longe de Viena, Freud ressente-se do tanto que mudou na Europa e dessa mancha que alastra com a ameaça do nazismo. Sente-se em casa em Londres, mas sabe-se velho e perto do fim, o que não o impede de manter a lucidez e a necessidade de análise constante sobre si próprio e o mundo. A reflexão sobre Thomas Mann, que a espaços será assumida como um diálogo sem interlocutor, alimenta-se recorrentemente de alguns dados biográficos do autor de Os Buddenbrook, mas principalmente da sua obra literária e do que nela se revela sobre mágoas familiares, recalcamentos e bloqueios. E sendo um percurso que aponta para Mann, numa tentativa de o analisar sem que ele o tenha pedido (tê-lo-á, pelo contrário, recusado), é sobretudo uma deambulação pela própria existência de Freud, as mágoas, recalcamentos e bloqueios que carrega consigo, mesmo que deles possa ter uma consciência que talvez Mann não possua sobre os seus.
«Thomas Mann pensando em Freud em Dezembro de 1930» lê-se como uma resposta ao pensamento de Freud sobre Mann, e com isso começa a assomar um dos mecanismos que permitem ler este livro como um romance. A matéria da acção narrativa antecede em oito anos o texto anterior e o facto de surgir na sua sequência, e de nela se ler uma resposta ao que ainda não teria acontecido, bem como um gatilho motivador do que anteriormente já se leu, abre as portas para uma estrutura que baseia o seu avanço numa noção de tempo não linear.
Num movimento de retrocesso cronológico, a narrativa encaminha-se para o passado e nesse movimento reconhece-se uma espécie de arqueologia, a mesma que Freud chegou a usar como metáfora para a psicanálise.
Não se trata de uma simples analepse, mas antes de uma assunção sobre a pouca utilidade de uma cronologia organizada e sequencial quando se trata daquilo a que poderemos chamar vida interior. E é nesse espaço, em diálogo permanente com o mundo, mas ainda assim individual e plenamente habitado apenas por quem o vive, que este livro se constrói.
Esta estrutura confirmar-se-á no terceiro texto, o mesmo que dá título ao livro, quando a narrativa se detém em Júlia Mann, mãe de Thomas Mann, mulher nascida no Brasil e deslocada para a vida burguesa de Lübeck, na Alemanha, entretanto casada com um comerciante com quem viria a ter vários filhos e claramente perdida entre aquilo que pensava e sentia e aquilo que os outros esperavam de si. Aqui, a cronologia oscila entre a infância de Júlia Mann e o final da sua vida, deslocando-se entre um tempo em que Thomas Mann estava longe de existir e um outro em que a sua existência é já o centro de todos os conflitos que o próprio aborda no segundo texto do livro, e aos quais Freud faz referência no primeiro. Contudo, este não é um livro sobre Thomas Mann, nem sequer sobre Freud ou Júlia Mann, e aí está a sua excepcionalidade, reforçada por uma escrita que se molda a cada uma das personagens centrais sem com isso perder a identidade.
O Regresso de Júlia Mann a Paraty serão as três novelas que percorrem as vidas de Freud, Thomas Mann e Júlia Mann e os pontos onde essas vidas se tocam, mas é sobretudo um romance a várias vozes, sólido e frequentemente prodigioso, sobre o estilhaçar de uma ideia organizada de tempo e os efeitos que isso teve no nosso modo, individual e colectivo, de vermos o mundo e de procurarmos entender-nos a nós próprios. Que a sua acção, extensa e fragmentada, se reparta entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX, altura em que começa a desenhar-se um novo conceito de tempo (um dos elementos com que Einstein trabalhará na sua teoria) e uma noção clara de a memória não ser apenas o repositório das coisas que deixámos no passado, não será um acaso.
A teoria psicanalítica de Freud e o impacto tremendo que teve no pensamento do novo século, bem como na literatura que no seu início se foi criando, são elementos chave que atravessam o livro de Teolinda Gersão, ainda que em momento algum se detenha a narrativa nesta análise histórico-cultural.
Esse é, aliás, o seu imenso sortilégio, congregar o turbilhão mental que foi o início do século XX, o abalo que fez saber que nada mais poderia ser lido, entendido e olhado de modo arrumado e linear, num romance que não deixa de ser a história de três personagens. São três personagens a muitos níveis extraordinários – ainda que Júlia Mann, por ser mulher e pouco conforme aos códigos comportamentais da sua época, nunca tenha tido o merecido reconhecimento – e com intervenção directa, mesmo que de modos diferentes, em todas estas mudanças que inauguraram o século passado, mas é o cruzamento das suas histórias, sobretudo a um nível profundo e também inconsciente, que faz erguer um romance que está longe de ser um mero exercício biográfico. Que a bibliografia o registe como um conjunto de três novelas, será decisão autoral ou editorial, e obviamente legítima, mas é como romance que este livro se afirma. E um grande romance.