Gonzo para levar a sério

Sexografias
Gabriela Wiener
Antígona
Tradução de Guilherme Pires
Aquilo a que chamamos jornalismo gonzo, marca indelével deixada por Hunter S. Thompson no património jornalístico da humanidade, não costuma fazer parte das escolhas demonstrativas quando se trata de elencar peças de jornalismo às quais vale a pena voltar e ter como exemplo. Neste livro, o primeiro que publicou, a jornalista e escritora peruana Gabriela Wiener assume o gonzo como método, respeita-lhe as regras e, no caminho, acaba por escrever uma série de reportagens que não ficam a dever nada ao rigor e à seriedade que tendemos a atribuir apenas a uma certa forma de reportar.
Logo no primeiro texto destas Sexografias, a autora aproxima-se de um milionário excêntrico que inclui nos seus muitos negócios o perfil de guru. Ricardo Badani vive com seis mulheres, assume um discurso que cruza um machismo disfarçado de sofisticação com as inevitáveis filosofias orientais, tendo atrás de si um rasto de desconfianças várias que, desconfia Wiener, devem tanto às sombras que atravessam os negócios e o passado do milionário como a um moralismo social e cultural que não aceita estruturas familiares que fujam da “tradicional”. Esse é um dos gatilhos a que a autora não resiste, e por isso se dispõe a passar um par de dias na mansão Badani, sem gravadores nem câmeras, mas com total acesso a tudo e a toda a gente.
Não há grande coisa a aproximar Badani de Wiener e a autora faz questão de o deixar explícito, declaração que confirma uma das muitas permissividades do jornalismo gonzo e que se junta a todos os outros elementos que fariam tremer qualquer editor: partilha as suas fantasias, inclusive as sexuais, participa de modo activo nas acções que reporta, faz considerações várias sobre o que vê e não se priva de alguns comentários onde o humor ou o sarcasmo são ingrediente principal. Assumida a abordagem, diga-se que «Guru e família» é um exemplo claro de uma peça jornalística que se equilibra com elegância no fio de uma lâmina que, num instante, podia resvalar para o sensacionalismo, mas nunca se deixa cair e mantém-se solidamente ancorada na vontade de saber, perceber, esclarecer.
O texto que se publica no livro não é o mesmo que a autora publicou na altura (terá sido uma versão mais breve), num dos espaços de imprensa onde escrevia, e disso nos dá conta numa das várias notas de rodapé que, aliás, são elemento muito relevante neste Sexografias, acrescentando reflexões e algumas confissões que não teriam encontrado espaço nos jornais e nas revistas. É numa dessas notas ao texto «Guru e família» que lemos:
«(…) há um marido e seis esposas e todos dizem ser felizes.»
E é nesse momento que se torna claro que o osso deste texto não é a vertente espectacular da vida da família Badani, com programas televisivos, lojas de roupa interior e presença constante nas revistas de futilidades, mas a dupla moralidade com que a sociedade latino-americana a julgou, condenando um modo de vida (que, confirmou Wiener, não era imposto, mas aceite por quem o abraçou) inaceitável para quem prega a via única de uma família dita tradicional e, ao mesmo tempo, celebrando esse modo de vida desde que ele aceite transformar-se em espectáculo mediático, celebração confirmada pelas audiências e pela omnipresença desta família nos media e nas conversas quotidianas.
Nos outros textos que compõem este livro, a atenção da autora mantém-se, bem como o compromisso com uma forma de estar e escrever que junta rigor, presença assumida de quem escreve e reflexão sem baias. O tema vasto e inesgotável da sexualidade está sempre no centro da prosa, ao lado da própria autora, que assume em todos os momentos o seu interesse pelas pulsões, os desejos, os tabus, os modos de relacionamento e todas as vertentes possíveis, sociais, culturais e sempre políticas, desta faceta essencial na construção do ser humano. Wiener vai conhecer algumas pessoas que trabalham na prostituição, em Paris, um clube de swing em Barcelona, um famosíssimo actor de filmes pornográficos – Nacho Vidal – , uma dominadora com uma carteira muito selecta de clientes e uma abordagem deontológica sem mácula aos serviços que presta, um site de sexo amador onde a autora trabalha por uma noite, uma prisão… São histórias muito diversas e Wiener aborda todas elas com a curiosidade genuína que faz nascer qualquer bom texto jornalístico.
Tendo em conta os ambientes por onde passa, as histórias que reporta e as personagens a que dá voz, Sexografias podia facilmente transformar-se num livro voyeurístico, um catálogo sensacionalista de práticas e entendimentos sobre a sexualidade e o sexo, algo que, como é bem sabido, vende sempre. Nada mais longe da essência destes textos. Cada reportagem, cada incursão ao quotidiano das pessoas que aceitam falar e partilhar a sua história, constrói-se a partir da atenção plena, da escuta activa e do respeito, sempre sem permitir que a moralidade disfarçada de pudor se interponha e também sem dar qualquer espaço ao exibicionismo gratuito. O que há para ver, é visto e contado, procuram-se as histórias, os hábitos, as práticas, um contexto, mas nunca uma explicação causa-consequência, que só serviria para sossegar os moralistas, esquecendo que estas não são as suas histórias nem o seu espaço de fala, e muito menos um discurso falsamente arejado, a apontar para uma suposta modernidade de quem escreve e publica, como se estivesse aí o foco da história:
«Teria odiado fazer a típica “história de sexo” escrita por um jornalista de ideias liberais.»
(pag.199)
Os clássicos não saem de moda, já se sabe, e um jornalismo que abdique da honestidade não deveria merecer o nome, mas o que Sexografias mostra (entre várias outras coisas) é que o jornalismo gonzo pode ser feito com honestidade, e com uma honestidade de tal forma crua que o leitor ou a leitora sabem sempre o que está a ser feito em cada momento da reportagem, como se fez, por que vias e com que expedientes. Não será a abordagem mais canónica, nem a mais adequada para todos os temas informativos, mas feita com seriedade pode confirmar-se como uma forma extremamente eficaz de retratar certas histórias, ambientes e pessoas que dificilmente seriam plenamente acessíveis com outro tipo de abordagens. Nas mãos de Gabriela Wiener, não é apenas a eficácia que salta à vista, mas também a vontade genuína de conhecer, de perceber, e de partir daí para questionar – o que vê e o que lhe contam, sim, mas sobretudo o mundo e as suas produções constantes de regras e morais, sempre cheias de pudor, mas sempre prontas a adaptarem-se se o privilégio de uns quantos se sentir ameaçado.