
Quero é ser Zeca Pagodinho
Outro dia, sentada num canto do sofá, contemplando o meu terracinho encharcado pelos sucessivos dias de chuva e melancolia, surpreendi-me ao perguntar em voz alta: “E afinal, o que eu quero ser?” Uma pergunta aparentemente simples desencadeou um terremoto em mim.
Não pude continuar ali, aninhada no quentinho da manta por cima do aquecedor — não façam essa sandice, por favor — pois, ao me indagar “o que eu quero nesta vida?”, não formulei apenas uma dúvida pessoal. Sem me dar conta, ativei uma crise de natureza existencial que exigiu refletir sobre quem sou neste mundo e decidir quem quero ser. Em seguida, surgiu uma camada espinhosa no meu pensamento, meio psicanalítica: o desejo nunca é totalmente nosso. Os quereres são herdados, atravessados pelo Outro. O fio vai puxando o fio e, logo em seguida, veio: o desejo mimético. Acabamos querendo aquilo que o Outro legitima como aceitável. E, claro, por fim apareceu a pergunta mais inconveniente: “No meu íntimo, o que me faz ser eu mesma?” Uma canseira, convenhamos.
A esta altura já estava de pé no meio da sala. Então olhei para a televisão ligada, estilo aquela presença familiar no ambiente, coisas que nós, os antigos, ainda fazemos, e vi o comercial de um espetáculo: Zeca Pagodinho — 40 anos de carreira, no Coliseu dos Recreios. Quase gritei: Eureka! (como o Professor Pardal — Arquimedes que me perdoe a preferência).
A minha autocrítica mudou ali num instante. Não era “o que quero alcançar?”, passou a ser “como posso existir sem pedir autorização?”. Porque ver Zeca na TV foi como ver alguém que traduzia o que eu nunca tinha nomeado: a libertação do olhar alheio, a recusa desse desejo mimético aborrecido e a soberania tranquila de pertencer ao próprio chão. Zeca vive inteiro em si. E é isso o que eu quero, pensei.
E quem é Zeca Pagodinho, não no sentido artístico ou biográfico que todos conhecemos, mas no plano filosófico ou antropológico?
Zeca não é apenas o cantor popular de enorme sucesso comercial. Ele é uma exceção cultural dentro de uma sociedade que se construiu sobre a verticalidade do prestígio. Brasil e Portugal — mais afins do que supõem — foram moldados pela crença de que o valor está acima. Na ambição de pertencer às elites reais ou imaginadas, toda trajetória deverá ser medida pela capacidade de aproximar-se desse “cima”. A elite é a referência. As subjetividades brasileira e portuguesa foram educadas para desejar sempre a classe imediatamente superior. E quando alguém ascende, desloca o ideal para um topo ainda mais alto. Uma escadinha infinita onde o valor nunca está onde se está.
Porém Zeca Pagodinho rompe essa equação. Ele não deseja ser outro. Não disputa posição. Não se organiza pelo olhar da elite, tal como não se opõe a ela. A elite não é inimiga. Para Zeca, a elite é apenas irrelevante. Ele simplesmente não compra essa lógica.
Faço aqui um parêntesis enquanto suburbana — que nunca deixei ou deixarei de ser mesmo que caminhe pelo vale das sombras do Champs-Élysées, more em Ipanema ou em Lisboa. Apesar deste modo de viver do Zeca Pagodinho estar associado ao subúrbio do Rio de Janeiro, não é o subúrbio inteiro que se pauta por essa ética. Há um subúrbio aspiracional, sobretudo a partir dos anos 80, 90 e 2000 com o surgimento de uma nova geografia, a Barra da Tijuca — sim, vocês também são suburbanos; e se dúvidas houver, basta observar como os moradores da Zona Sul desprezam o vosso adorado bairro. Esse subúrbio da Barra passou a desejar ser elite, a performar elite e a marcar distinções por consumo com carros, marcas, viagens, e um afastamento das origens.
Há, no entanto, um outro subúrbio, o tradicional filtrado pelo carácter do samba que criou uma metafísica própria: a do pertencimento horizontal. A roda, o botequim, a rua, o quintal. Lugares onde a dignidade não é medida verticalmente, mas pela convivência e pela lealdade de pertencimento.
Mesmo quando Zeca precisou mover-se fisicamente — como quando em 2002 se mudou para a Barra da Tijuca porque o filho de 14 anos precisava cursar o ensino médio — ele não deslocou o seu centro simbólico. A Barra não se tornou para ele um destino de ascensão; foi apenas logística. O seu lugar de mundo continuou sendo Xerém, um local mais deslocado do centro das elites do que Irajá, onde cresceu. Zeca escolheu morar em Xerém quando ficou famoso; criou ali um universo de convivência, a sua roda de samba de altíssimo prestígio entre os sambistas (e não só); fundou o Instituto Zeca Pagodinho em 1999. Zeca não mudou de identidade ao mudar de código postal. Ele continuou sendo de Xerém estando onde estivesse. Esta é a prova irrefutável da soberania do próprio chão: o sujeito que não é deslocado pela geografia do prestígio. Na verdade, foi ele quem deslocou o prestígio ao colocar Xerém no mapa.
Antes dele, quando João Nogueira criou o Clube do Samba no Méier também não buscou entrar para a elite musical carioca: ele gerou um novo centro, um país dentro do país. Cartola, Dona Ivone Lara, Nelson Sargento, João Nogueira — todos representam essa linhagem do “não precisar ser outro para existir”. Zeca herda essa genealogia: onde o valor não vem de cima. Vem do que está ao lado.
“Deixa a vida me levar”, composto por Serginho Meriti e Eri do Cais, talvez seja o verso mais conhecido da extensa obra de Zeca. E, se num primeiro momento, aparenta passividade, é na verdade a afirmação tranquila da vida como ela é dentro desse ethos — sem ressentimento, sem ambição de parecer além do que se é, sem desejo de ascender para ser reconhecido. “Se não tenho tudo que preciso, com o que tenho vivo” é a formulação poética dessa ética de mundo: o valor não está fora, nem acima, nem no outro. O valor está no que é. Daí a canção se ter tornado um hino, por não reivindicar o lugar do dominante, não disputar a validação do topo, mas habitar o próprio território com dignidade.
Zeca acredita profundamente que o lugar que ocupa é suficiente para existir com plenitude. Tem a sabedoria serena de alguém que acredita que o seu quintal é mundo; que o seu botequim é centro; que o seu linguajar é língua completa; que o seu jeito de viver não precisa da aprovação das elites económicas, sociais ou intelectuais. E isso não é efeito da pobreza, é uma escolha estética, uma opção filosófica.
Assim, ao ambicionar ser Zeca Pagodinho, não pretendo a sua riqueza, status ou fama. Ser Zeca é aspirar à plenitude sem pedir autorização. É ser inteiro no próprio mundo. É recusar a engrenagem social que nos obriga a querer subir, sem precisar “bater de frente” (parafraseando o mestre).
Este verso passou a ser para mim a síntese de um manifesto existencial: “Deixa a vida me levar”. Viver me basta.
Lá fora, a chuva também se deixava contagiar pela influência de Zeca e caía macia, sem alardes. Passei o resto da tarde cantando os sucessos desse grande sábio e concluí que, a vera, quero é ser Zeca Pagodinho!