por Clara Ferreira Alves e José Saramago
5 Novembro 2025

Em outubro de 1995, aquando da publicação de Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago concedeu uma longa entrevista ao semanário Expresso. Na conversa com Clara Ferreira Alves, o escritor contou sobre as dificuldades técnicas e emocionais que enfrentou ao escrever o romance que fala de uma epidemia de cegueira branca. Quando passam 30 anos da publicação do livro, a Blimunda recupera esta entrevista.
“Nunca nenhum livro se me apresentou tão imperiosamente como este”
Clara Ferreira Alves: Achei este livro difícil. E muito duro. Trata-se de uma alegoria. Toda esta gente cega representa a humanidade. Que projeto é o do livro?
José Saramago: Espero que o leitor sofra tanto como eu sofri. Bom, quero dizer, este livro fez-me sofrer muito, não pelas dificuldades da narrativa, que as teve, mas pelo tema. De todos os outros livros que escrevi só um me produziu um mal-estar físico assim, mas numa única passagem. Foi o Levantado do Chão, na parte que descreve a tortura e a morte do Germano Vidigal. Este livro nasceu como os outros, e parece que já não tenho outra maneira de os escrever, de forma inesperada. Foi em setembro de 1991, no meio tempo entre o acabar-se e o publicar-se O Evangelho Segundo Jesus Cristo, quando me apareceu a ideia, estava eu no restaurante, na Varina da Madragoa, pensando em coisas vagas. Apresenta-se-me o título, Ensaio Sobre a Cegueira, com o embrião do que podia ser: toda a gente cega.
Não há uma relação entre o título do livro e o teu episódio do desprendimento da retina, em Roma, o medo súbito da cegueira?
É impossível dizer que não tem nada que ver, mas não vem daí.
Pensei mesmo que o mar de leite de que falas no livro refletisse a tua experiência de cegueira momentânea.
Não, não! Essa ideia aparece em quem tem conhecimento desse episódio do desprendimento da retina e da operação que se seguiu, mais nada. Não tem que ver.
A minúcia com que descreves certas maleitas da especialidade de oftalmologia, no livro, pensei que também vinha daí, a amaurose, e por aí fora…
Fui às enciclopédias, está tudo nas enciclopédias.
Imaginei-te a arguir, como um hipocondríaco, com o teu médico. Eu nunca tinha ouvido falar na amaurose. Como é que partiste do título para o resto do romance?
Não cheguei a tanto. Nem eu tinha ouvido falar na amaurose. Quando o título me veio, ele já contemplava a situação em que todas as pessoas estariam cegas. Quando se passa ao concreto, começam as dificuldades. A minha foi – e fez-me parar e destruir folhas, que reutilizei noutro contexto – sustentar o tema. Desenvolver uma espécie de processo acumulativo de consequências até chegar às consequências finais. Mas isso não chegava, e tive de parar, parar num estado de perplexidade. Saí disso quando compreendi que tinha de transformar esse macrocosmo num microcosmo, onde seria mais fácil analisar as transformações decorrentes da cegueira geral. Esse lugar é o manicómio onde toda a gente cega – na primeira fase da epidemia, chamemos-lhe assim – é encerrada, para ver se é possível controlar o mal. Quando os que estão dentro passam para fora encontram um mundo onde todo o mesmo processo se desenvolveu, mas sem encerramento.
Anda por aí A Peste, de Camus?
Não, não existe paralelo. Situações destas, de “huis clos”, aparecem na literatura. Trata-se de uma alegoria, transparente, e trata-se da humanidade. Se me falares em ética, digo-te que é um livro frontalmente ético. Sendo nós uns animais racionais, é duvidoso se estamos a usar, desde sempre, a razão que nos é dada.
Que nos é dada? Por Deus?
Não, a expressão não tem sentido, a razão que se construiu ao longo de uma evolução biológica e cultural. Não temos um comportamento racional, e isto vem na continuação de um livro que é praticamente contemporâneo de todas estas preocupações, In Nomine Dei. Não me parece que o modo como tudo isto funciona seja conduzido pela razão. E o modo que encontrei de tornar isto visível foi o de declarar que somos cegos e encontrar uma situação em que é inevitável que a razão deixe de funcionar e todos os instintos, a começar pelo da sobrevivência, despertam. Porque é que a cegueira é branca? Talvez para dizer que aquela cegueira não é cegueira.
Pretendes dizer que basta uma rutura, uma coisa muito simples, como o medo, para o animal tomar conta do homem?
Onde vamos parar? Em que direção vamos? Este livro não deterá a humanidade ou as pessoas da minha rua numa direção supostamente errada, mas a coisa apresentou-se-me porque andava a preocupar-me.

A barbárie.
A barbárie. Como, ao fim de séculos de civilizações, estamos perto da barbárie. Apesar da beleza e do pensamento, a tentação da barbárie. Não é preciso ir aos campos nazis ou ao “gulag”, a barbárie está aí, no Ruanda, na ex-Jugoslávia… E são apenas exemplos que ocupam mais espaço nos telejornais. Todos os horrores que descrevo e que deixarão o leitor desconcertado – dirá: “este não parece ser o autor que eu conhecia” – estão neste momento a acontecer, no prédio ao lado, na rua ao lado, em qualquer lugar. Roubos, violações, mortes, são o pão nosso de cada dia.
A violência sempre existiu. Porque é que te apeteceu escrever um livro violento sobre a violência? Porque é que te apeteceu meter nas palavras essa violência concentrada? Perdeste por completo uma confiança na natureza humana que tinhas nos teus princípios como escritor? Deixaste de ver a poesia da natureza humana? Que descrença é esta?
Não creio que se possa dizer que há nos meus livros anteriores essa confiança na natureza humana. Há um certo ceticismo irónico misturado com uma atitude de paixão, tudo isto envolvido numa certa poesia.
Não digo que há muita confiança; há, pelo menos, alguma. Substituída pelo pessimismo puro?
Talvez eu tenha achado que a ironia não chega, só roça a superfície das coisas. Era necessário ir mais longe, não porque eu o tivesse decidido depois de ter escolhido o tema, mas porque o tema o impunha. Este livro foi escrito com um rigor, uma lógica inatacável. Considera muitas das consequências que resultariam se a humanidade cegasse. É um livro onde não há imaginação. Só a análise fria.
É um livro muito gráfico. E que não solta o leitor, sem pausas, num crescendo.
Não quis soltar, não há tempos mortos, há um crescendo até ao momento em que saem, quando a tensão se torna mais ampla, menos concentrada. Quando eles saem do manicómio, o livro caminha para o seu fim.
Eles recuperam a vista. Como autor, porque é que escolheste esse caminho? Uma lágrima de otimismo? É possível recuperar a visão?
Quis que eles saíssem daquilo como quem sai de uma experiência. Eu acho que sim, que é possível recuperar a visão. E o fim do livro aponta para aí.
A mulher do médico, uma personagem que conduz o livro, vai cegar, ou melhor, pensa que vai cegar quando todos veem. Quem é esta personagem, qual o seu papel?
Ela é irmã gémea da Blimunda. A outra vê o que não se vê, vê através da pele, e esta vê o mundo que os outros veriam se não fossem cegos. E é uma mulher dotada de uma certa sabedoria, não tão misteriosa como a Blimunda, mas é a sabedoria da mulher madura que é a única que vê e que sabe que a todo o momento pode também cegar. E pode desejar cegar, por não aguentar os horrores que tem de ver. A mulher, que não foi tão premeditada assim, aparece quando eu tenho necessidade de uma personagem que conserve a visão. Preciso, como estímulo dramático, que a mulher vá dizer que também cegou para poder acompanhar o marido, o médico. A mulher não estava na minha cabeça no princípio do livro, e só a fui buscar quando precisei dela.
Quando ela apareceu, não me pareceu que se tornasse uma personagem fundamental e que fechasses o livro com ela. Pensava que fecharias o ciclo com o homem do princípio do livro, o que cega no semáforo.
O livro passou por duas hipóteses de remate, e essa era uma delas. Pu-la de parte, e quando a figura feminina já tinha uma função, para mim era claro que cegaria quando todos recuperassem a vista. Mas era um remate muito pessimista.
A solução foi a da ambiguidade?
Perguntei: porque é que ela haveria de cegar quando toda a gente recuperasse a vista? Ela olha o céu e vê-o todo branco, mas baixa os olhos e verifica que a cidade ainda lá está. É esta a frincha de esperança que eu abro.

A tal lágrima de otimismo? Como leitora, achei que a cidade estava, mas podia desaparecer, estava ali, mas pela última vez. Achei que ela ainda podia cegar.
Não lhe chamaria otimismo, simples esperança. A tua leitura é uma leitura, mas eu acho que não, que a cidade não desaparece. E que o mundo vai mudar. O que o autor quereria é que o mundo fosse mudado. Se este livro aparece nesta altura da minha vida, que é de idade avançada…
Mas que é uma altura de felicidade e de plenitude.
É, de facto, de plenitude pessoal e profissional, de felicidade familiar e afetiva, a saúde não posso desejá-la melhor… Estou em paz, mas se me perguntarem, de uma forma direta, você que é feliz como é que vem escrever um livro destes? A minha resposta é simples: eu sou feliz, mas o mundo não é. Senti que este livro tinha de ser escrito. Nunca nenhum livro se me apresentou tão imperiosamente como este e me fez sofrer como este.
A violência verbal do livro, que é controlada pela mestria narrativa, encerra uma revolta contra a morte, mais do que uma revolta, uma rebelião total. Como é que encaras, já que falas em idade avançada, a tua morte? Sabendo que alguma imortalidade está assegurada pelos livros? O homem está pacificado, mas o escritor não está, ou é o contrário? Quem fala aqui, com esta violência?
Quem fala com essa violência sou eu, a pessoa que eu sou. O José Saramago sentiu a necessidade de dizer estas coisas. A morte é uma injustiça. A morte vem sempre cedo de mais. Mesmo quando chega numa idade muito avançada, vem cedo de mais. Mas quando olho para as idades anteriores e vejo com que facilidade se morre e com que variedade de causas, verifico como é fácil morrer. Há um morrer de cegueira, que é um morrer de quem não usa a razão para viver. Usamos a razão para destruir, matar, diminuir a nossa franja de vida. E é essa espécie de indecência do comportamento humano, orientada pela exploração do outro, da sede do lucro, da ambição do poder, que conduz à indiferença e ao alheamento. Ao desprezo do outro. Se a ética não governa a razão, a razão está-se nas tintas.
Nos domínios da abjeção causada pela pobreza, a ignorância, a violência física, é possível falar de ética? Como aceder a um comportamento ético quando se vive no bairro de lata, na miséria? A ética está vedada aos desmunidos, ou representa para eles um esforço maior. E a vida fica muito semelhante à do teu manicómio de cegos.
Pois está. Eu não vou ao bairro de lata pedir que se comportem eticamente.
Essa é a injustiça do mundo? Ou é a dos que, podendo ver, resolvem ficar cegos? A dos ricos e poderosos?
A injustiça do mundo é a dos que, podendo ver, cegam os outros, retirando ao ser humano a possibilidade de se desenvolver. Não compreendo que uma sociedade que dispõe de meios científicos e tecnológicos de toda a ordem não resolva certos problemas. A minha forma de me insurgir é este livro, e eu não seria capaz de o fazer de uma forma direta, porque a isso assisto todos os dias na televisão, isso posso ler nos jornais e revistas. Há no livro uma passagem em que, falando de qualquer coisa que é horrível, digo isto: porquê a palavra horrível? Não deveríamos precisar do adjetivo. Bastaria enunciar o horror, e a sua perceção seria total. Às vezes, as palavras que usamos para compreender as coisas acabam por ocultar essas coisas. Talvez por isso eu tenha recorrido à alegoria, o leitor sentirá mais a situação dessa forma transposta. Este livro é um livro indignado.
A escrita deste livro é extrema. Como é que se escreve um pesadelo? Disciplinado como és, saías de escrever este livro e ias jantar, passear ou ouvir música? O que escrevias não ia ficando dentro da cabeça, sem conseguir sair de lá?
O tempo da escrita, sobretudo nos últimos tempos, foi de sofrimento, de momentos em que me sentia incapaz de aguentar aquilo que estava a escrever. Metade do livro foi escrito entre junho e agosto, embora o livro tivesse sido de gestação lenta. E foi um livro que sofreu as vicissitudes da minha vida nos últimos anos, a segunda operação ao olho esquerdo e a mudança para Lanzarote. Quando fui para Lanzarote, levava comigo quinze páginas. Estou lá desde fevereiro de 93, e o livro foi-se acumulando lentamente, com viagens e interrupções. E foi terminado em estado de convulsão. É um livro que eu vivi. Habitualmente, eu trabalhava da parte da tarde, mas compreendi que não podia trabalhar até às oito ou nove da noite. Ficava exausto e sem dormir. E passei a trabalhar de manhã. Sentava-me à mesa do almoço num estado miserável, tendo de lutar para comer. A certa altura, cheguei a dizer: não sei se consigo sobreviver a este livro. Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse de sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim.

Que nome darias a essa coisa feia? Desespero?
Gostaria de dizer, mas uma só palavra não dá. Não sei. Não compreendo o mundo. Descobri que existe a palavra moral, que existe a palavra imoral e a palavra amoral. Existe a palavra racional, irracional, mas parece que não existe a palavra a-racional. Nós somos seres a-racionais.
Sem hipótese de redenção?
Essa palavra está tão carregada.
De significado religioso. Já que falamos de Deus, o livro convoca-o muitas vezes, nomeia-o, e paira sobre o romance a sombra de Deus. Uma sombra conhecida.
Levamos a vida rodeados da palavra Deus.
Não existe no ser racional e não crente uma nostalgia de Deus?
Este ser que é racional e não crente, eu, nunca teve qualquer nostalgia de um Deus que nunca teve e nunca foi seu. Mas tenho a consciência da negatividade do conceito de Deus na relação entre os seres humanos. Ele é um empecilho. Ainda agora fomos ao Zambujal, e a Pilar quis passar por Fátima, onde não ia há muitos anos. E lá estavam as mesmas pessoas de joelhos, pagando alguma promessa. É completamente absurdo que uma Igreja – cónegos, bispos, cardeais, papa – permita que alguém se arraste de joelhos para pagar uma promessa. A primeira coisa que Cristo faria, com certeza, seria levantar aquelas pessoas do chão.
Se a religião rouba dignidade à pessoa humana, o que é que lhe pode restituir dignidade? O comunismo é uma forma de restituição da dignidade à pessoa humana?
Podia ser.
Ou podia ter sido?
Podia ter sido, não foi. E a prova é que o homem novo que nos foi anunciado não se encontrou facilmente. Esse homem novo não nasceu e provavelmente não nasceria. Não é possível transformar o ser humano.
Para ti, foi uma desilusão?
Posso chamar-lhe uma desilusão, que mostra até que ponto ia a minha – e a de muita gente – ingenuidade. O homem não pode viver fora de uma sociedade, e contudo tudo o que fazemos tende a destruir a relação interna da sociedade. Queremos a sociedade como uma abstração que funcione e que facilite a nossa vida, considerando todos os outros como adversários, inimigos ou competidores.
Essa visão não é demasiado estreita?
O mundo está aí, diante dos olhos.
Mas não existe uma tensão entre a bondade intrínseca do ser humano e a sua maldade, uma tensão que equilibra as coisas? Não há, no mar encapelado do mundo, ilhas de serenidade, lugares de esperança?
O ser humano não é intrinsecamente bom nem mau. O que verifico é que a bondade é mais difícil de alcançar e de exercer. E bem e mal são conceitos demasiado amplos. É mais fácil ser mau, mau nas suas formas menores, mau em tudo aquilo que nos afasta do outro, do que ser bom. A sabedoria popular, que cito muitas vezes, inventou essa frase egoísta: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti. Toda a ética está contida nesta frase. Ela é uma regra de conduta suficiente. Claro que tudo isto é uma utopia, e o autor é um tonto.

O livro seria o contrário de uma utopia. O que temos nele é uma distopia.
Cansei-me de entregar a resolução dos problemas da humanidade a um futuro qualquer, a uma utopia. A um futuro ao qual não chegarei. Um dia, o homem será irmão do homem, um dia, um dia… Não! Eu creio que temos de começar a pôr a questão ao contrário.
O facto de não acreditares num futuro ou na esperança que ele contenha pelo facto de a ele não chegares também é um propósito egoísta.
Seria bom que fosse possível, mas não acredito. Por causa do estado atual do mundo. No fim do século XX, é obsceno que se possa morrer de fome.
Antes desta entrevista contaste-me que viste perto do Zambujal pegadas de dinossauro.
Com 175 milhões de anos.
Ora bem, a passagem do homem sobre a Terra – e vamos falar darwinianamente e não religiosamente – corresponde, em tempo, ao piscar de olhos de um dinossauro. Ela é menos que precária. E quando destruirmos tudo, provavelmente nem a pegada deixaremos atrás, para o que vier depois, se vier. Já observaste a tua indignação a uma luz um pouco mais, digamos assim… cósmica?
Não sei até quando duraremos, mas, então, o que dá vontade de dizer é que nada valeu a pena.
Mas isso equivale a pôr nos braços do homem toda a esperança do mundo, uma esperança impossível. Ele tem de saber, ao contrário das outras espécies que dominaram a Terra, que não pode desaparecer, o que é irrelevante para a evolução biológica e relevante para a religião. Esse ponto de vista ainda é religioso.
Eu gostaria que o homem conhecesse um estado de felicidade, mas não consigo imaginá-la no plano coletivo.
A felicidade não é um dado biológico.
Gostaria de acreditar que à humanidade se ofereceram, ao longo da sua história, diversos caminhos. E que, se em lugar de termos tomado um, tivéssemos tomado o outro, quem sabe se não viveríamos melhor? Melhor uns com os outros. Criámos relações determinadas pelo poder. E pelo dinheiro.
Que mundo é este, o do fim do milénio?
Um mundo com duas tendências contraditórias: a globalização e a fragmentação. Um homem está em sua casa, afastado de todo o contacto humano, podendo chegar com o computador, o modem, o fax, a todos os lugares. Cada vez mais perto de tudo e mais longe de tudo. A tecnologia permite-nos ter tudo dentro de casa sem sair dela. E, se eu não estiver satisfeito com a realidade, posso viver noutra realidade, a virtual.
Mas enquanto uma parte da humanidade avança triunfalmente para o novo milénio, outra parte da humanidade, maior, é excluída para sempre do acesso ao novo conhecimento. A distinção do futuro não será entre os que têm o conhecimento e os que não têm? As novas hordas de ignorantes estão a ser criadas.
Nunca o fosso entre os ricos e os pobres, e entre o saber e o não saber, foi tão grande. Isto é assustador. Há poucos dias, tivemos a revelação da nossa ignorância com o relatório sobre a literacia.
Surpreendeu-te, a ti, que cresceste no país de Salazar?
Surpreenderam-me os números. E que vinte anos depois isto esteja na mesma. Cinco milhões e setecentos mil analfabetos funcionais, mais de metade da população.
E o facto de muitas pessoas não poderem estudar por não terem dinheiro?
A minha vida não é para aqui chamada, mas eu sou um desses casos. Tive de sair do Liceu Gil Vicente, porque não havia dinheiro, e ir para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde só se pagava cinquenta escudos por ano. E, quando chegou ao fim do curso, acabou-se. Não se continuou. Em vinte anos de democracia, o que é que mudou? E o inquérito pára nos 64 anos, abrindo perspetivas aterradoras para o que vem depois. Eu pergunto: como é que estão os instrumentos de comunicação entre esta sociedade? Como é que os cidadãos comunicam uns com os outros, quando mais de metade da população é assim? O que é que os informa?
O grande meio de comunicação é a televisão. Tens visto televisão portuguesa?
É qualquer coisa de definitivamente repugnante. Talvez seja necessário dizer em voz muito alta que a televisão não é, nem pode ser, a reger-se pelo lucro e as audiências, aquilo que dela se esperava. E lá fora já o tínhamos visto.
Somos o país europeu que menos gasta com a cultura e o lazer, e um dos que veem mais horas de televisão.
Se a televisão é a janela para o mundo, e se a janela é como é, as consequências estão tiradas. Como é que esse povo de analfabetos vai viver sem se tornar, em relação à Europa, um país de dependentes? Toda esta glória pseudodesenvolvimentista com que se adornou o cavaquismo, com a cumplicidade da maior parte das restantes forças políticas… Eu quero ver agora, para além das diferenças estéticas entre o modo de governar PS e o modo PSD, que outras haverá. Se as houver.
Há indignação em Portugal? Ou conformismo?
Perdemos a capacidade de nos indignar. Este é um livro indignado.

Mas há quem se indigne com a tua indignação, considerando-a deslocada.
Aos meus inimigos eu diria que há muitos mais motivos de indignação para que eles se entretenham a indignar-se sem ter de indignar-se comigo. Li há bem pouco tempo O Conde d’Abranhos e disse para mim mesmo: é o meu país em 1995. Os escritores não podem salvar a pátria, pobres de nós, mas como portugueses não podemos estar calados. Julgámos que a democracia resolvia tudo. Um deserto onde clama uma voz já não é um deserto. Nunca atingimos, mesmo nos tempos negros, um grau de conformismo como aquele em que estamos hoje. Deixou de haver inquietação e, pior, contestação. Só há contestação parcial: os estudantes contra as propinas, os ambientalistas contra não sei quê…
O teu “exílio” em Lanzarote não te fez perder a benevolência para com o país? Um certo azedume…
Não há azedume nem ressentimento. E não tenho de ter benevolência para o país que é o meu.
Que país vês da tua ilha?
Eu poderia voltar a este país, e poderia nele viver e escrever, mas não tenho motivo para regressar. Estou bem onde moro. Se há ressentimento e azedume, tem objetos claros e definidos. Como o que me levou a dizer há dias que, se o sr. Cavaco Silva fosse eleito Presidente da República, a primeira coisa que eu faria seria escrever para os serviços da Presidência para fazerem o favor de retirar o meu nome dos ficheiros. Porque ele foi primeiro-ministro de um Governo que censurou um livro. Mas não será Presidente, não será…
Onde é que está, para ti, a esquerda em Portugal?
Está onde está o Partido Comunista. E alguns grupúsculos, como o PSR. O resto, se quiserem chamar-lhe centro, chamem-lhe centro.
O que quer dizer que as pessoas votam no centro.
Exato. E que a travessia da esquerda continua, e se calhar continuará, e continuará.
Falando dos Cadernos de Lanzarote, o segundo volume teve uma receção crítica negativa. Eu mesma, por causa do que escrevi sobre o primeiro volume, sou referida com acidez. És acusado de não ver o mundo que te rodeia, de seres cego para ele, e de só te veres a ti mesmo como centro do mundo. No entanto, o Ensaio Sobre a Cegueira reporta-se ao estado do mundo, e tu mesmo só falas do mundo.
Se este livro não estivesse na cabeça há quatro anos, talvez dissessem agora que corri a escrevê-lo para não dizerem que não reparo no mundo. Mas é-me completamente indiferente que o vejam e que o reconheçam. É fácil dizer que os Cadernos de Lanzarote são inferiores aos meus livros…
É uma evidência…
É uma evidência. Mas é muito mais fácil isolar o que é mundano e social numa escrita daquelas do que escrever o que escrevo. O volume três há de sair, e está prometido que será inferior ao Ensaio Sobre a Cegueira.
A tua escrita nos Cadernos é seca, porque tu és seco e avesso a efeitos dramáticos. Mas este livro tem uma enorme carga dramática, deliberada.
Exato, ele é o reflexo do dramático estado do mundo. Eu sei que há auroras resplandecentes e passarinhos que cantam, mas este é o estado do mundo. Ele é assim.