Casa da Andrea Andréa Zamorano 29 Outubro 2025

Esvanecer

            Entrei no carro e vi o maço de cigarros azul vazio, amassado, formando uma bola encaixada no painel, por cima do porta-luvas. A chave do apartamento também estava ali, junto do isqueiro e da areia da praia espalhada pelo chão. Sem pensar, fiz um gesto: agarrei o maço velho, atravessei a rua e joguei numa lixeira, perto de onde o carro ficou sem bateria. Logo depois chegou o rapaz da assistência. Conectou os cabos a uma máquina, deu uma carga e o carro voltou a funcionar. Agradeci e, em seguida, arranquei em direção ao apartamento do meu irmão, então me dei conta. Chorei. Depois chorei mais, o caminho inteiro. Naquele momento, não podia voltar até o caixote do lixo — os homens da dedetização já me esperavam na porta para que eu abrisse o apartamento e permitisse que fizessem a manutenção anual do condomínio, agendada meses antes da morte do meu irmão.

            Talvez por ainda não ter interiorizado a sua ausência definitiva, entrar no carro — que na verdade é meu, mas que era mais dele porque era ele quem o usava — e ver aquele maço não me fez pensar que ele não voltaria a estar ali. Que nunca mais encontraria outra embalagem esquecida por ele. Naquele primeiro instante, vi apenas algo fora do lugar, onde na verdade estava uma marca da sua existência.

            Tal como o nosso pai, o meu irmão fumava bastante. Papai chegava a três maços por dia. Por ser vários anos mais novo, talvez o meu irmão não se lembrasse, mas com frequência o nosso pai dormia com o cigarro aceso: um braço pendurado para fora da cama ou o borrão que caía no seu peito ou os lençóis queimados, com buracos. Mamãe, claro, e com razão, desfiava um rosário de reclamações e advertências: Um dia você põe fogo na casa! — exclamava, já sem muita convicção.

            Quando éramos pequenos, de vez em quando, dormíamos no quarto deles nas noites de muito calor. O quarto era arejado, com uma janela ampla que ventilava bem, e papai ligava o ventilador no máximo. No fundo, gostava que dormíssemos ali e da bagunça que fazíamos. Meu colchão ficava debaixo da janela, do seu lado da cama. O do meu irmão do meio, na outra ponta, no lado da nossa mãe. Não guardo memória do meu irmão mais novo nessas peripécias.

            Nos últimos oito anos trabalhávamos juntos e conversávamos tantas coisas. Estranhava, porém, que se lembrasse de certos episódios que eu julgava impossível que ele recordasse. Os nossos pais já estavam separados desde que tinha seis anos. Mesmo assim, no que dizia respeito às “lembranças do papai”, ele parecia conhecê-las todas — até as que julgava serem só minhas.

            Imagino, agora, que como passou a vida buscando reproduzir os seus comportamentos, talvez também ele tenha queimado lençóis na sua própria casa, misturando as suas memórias às nossas. Ultimamente, o meu irmão me dizia que fumava “apenas” um maço e meio por dia. Não foi isso que causou a sua morte prematura. Ainda assim, o cigarro foi sempre parte indissociável da sua identidade.

            Uma das estranhezas da morte é o desvanecimento. Os gestos, hábitos ou objetos que marcavam a presença de alguém no mundo vão sumindo até que o cotidiano se esquece. Sinto este momento a aproximar-se, tenho medo da imaterialidade que atravessará os dias transformando a presença em pó, tornando-a difusa até ficar transparente, invisível. Por isso, não queremos nos desfazer das roupas do marido, não modificamos o quarto do filho, não jogamos fora o maço de cigarro velho do irmão. 

            Na incapacidade de alterar a realidade, desejo uma transição imperceptível, o mais lenta possível para esse lugar de vazio que me aguarda. Só que o telefone não me envia mais mensagem alguma, os óculos de sol já não ficam esquecidos atrás do balcão e são encontrados por mim, as minhas mãos não ficam impregnadas com o cheiro de tabaco apenas por ter segurado no volante para dirigir depois dele. Tudo me é negado de maneira explícita e abrupta.

            Porém, é justo com as mãos, com as pontinhas dos dedos que sinto a permanência do meu irmão nesta vida. Vou contornando a irreversibilidade: quando entro no carro, não procuro mais o lugar onde estava o maço. Olho para o chão e sorrio ao ver que, pelo menos, a areia da praia ainda está ali. Então, com as pontas dos dedos, com as almofadinhas que ficam logo atrás das unhas, toco na areia espalhada. Deixo os dedos pousados por um tempinho, fazendo uma leve pressão. Sinto na rugosidade dos grãos a sua alegria, penso nele sendo feliz, na praia, e me esqueço de novo que ele não regressará.

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