Destaque Sara Figueiredo Costa 18 Agosto 2025
© Jean-Paul Miroglio, 1975

O ano de todas as esperanças visto de fora

Em Almada, no espaço da antiga Lisnave, uma exposição reúne perto de duas centenas de de fotografias assinadas por fotógrafos estrangeiros que passaram por Portugal entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975.

Mal as primeiras notícias sobre a Revolução dos Cravos começaram a circular na imprensa estrangeira, vários foram os jornalistas, muitos deles fotógrafos, que se deslocaram a Portugal para testemunharem os acontecimentos. Alguns fotógrafos tiveram passagem breve pelo nosso país, entre Abril de 1974 e Novembro de 1975, mas muitos permaneceram longas temporadas, acompanhando a festa nas ruas, as reuniões, as ocupações, as decisões diárias que iam sendo tomadas pelo governo provisório, primeiro, e depois as eleições livres, finalmente.

Venham Mais Cinco (o olhar estrangeiro sobre a revolução portuguesa) é uma imensa exposição que reúne perto de duas centenas de fotografias captadas por esses fotógrafos e fotógrafas, boa parte em território português, mas algumas também nos países africanos que entretanto conquistaram a sua independência depois de décadas de luta – processo, aliás, fundamental para o próprio 25 de Abril. A exposição pode ser vista em Almada, no espaço da antiga Lisnave, até ao fim deste mês.

Uma história comum

Ver esta exposição hoje é também um olhar de fora, na medida em que o tempo tem essa faculdade de nos colocar num outro ponto de observação à medida que vai passando. Os tempos retratados nestas imagens são parte da nossa história comum, tenhamo-la vivido ou apenas recebido como memória alheia e herança, mas estão longe do país que hoje conhecemos. Desde logo, a imensa vaga de participação política popular, visível nas reuniões e assembleias, nos comícios e manifestações e nas próprias eleições, parece hoje uma anacronia. E, ainda assim, é dali que vimos enquanto habitantes de um país democrático.

Há muitos pontos comuns às cerca de duzentas fotografias que se mostram nesta exposição. Um deles é a omnipresença de jornais e de gente que os lê nos mais diversos contextos. A Capital, o Diário Popular, o Jornal de Notícias, O Século e vários outros títulos surgem nas mãos de soldados nos dias seguintes ao 25 de Abril, mas também nas de transeuntes, manifestantes, gente que se desloca ao quiosque para se abastecer de notícias. Captado pelo fotógrafo e cineasta Vojta Dukát, há mesmo um homem que, encostado a uma parede, em Santiago do Cacém, lê um jornal ao mesmo tempo que tenta equilibrar mais uns quantos títulos de imprensa nas mãos assoberbadas de papel. É uma imagem de vontade, curiosidade, necessidade de saber o que se passa, quem diz o quê, quem decidiu, o que aconteceu e o que pode acontecer a partir dali. Ou talvez seja apenas hábito, mesmo que voraz. Não sabemos quem é aquele homem, mas percebemos a sua voracidade perante as notícias do dia numa altura em que estas chegavam lentamente e eram esperadas com ansiedade. Se a rádio assegurava as notícias mais imediatas, os jornais eram o espaço da informação regular e mais extensa na sua análise e na contextualização dos factos e essa omnipresença de jornais impressos nas fotografias de Venham Mais Cinco é ilustrativa do tanto que mudou em meio século.

© Paola Agosti, 1974

As fotografias aqui expostas não se organizam cronologicamente, mas por núcleos temáticos. Muitas vezes, conseguimos ver a mesma cena de ângulos diferentes, porque houve vários fotógrafos no mesmo local. Um desses núcleos temáticos é o da ocupação de terras no período do PREC e da Reforma Agrária, e aí se guardam algumas sequências cheias de significados, camadas múltiplas que nos dão a ver a pobreza em que viviam os trabalhadores agrários, a vontade de se organizarem para produzirem, o contraste das condições em que viviam quando descobrem o interior das casas ocupadas, anteriormente pertencentes aos senhores rurais que os empregavam em longas horas de trabalho árduo a troco de muito pouco. As fotografias de Fausto Giaccone Contrasto que registam a ocupação da Herdade do Sol Posto, no Ribatejo, são exemplares dessa realidade, mostrando crianças que pela primeira vez seguram uma boneca nas mãos, adultos que olham, admirados, para as camas confortáveis forradas a boas colchas, gente que já saberia da sua condição, mas que ali descobriu plenamente o que era isso das classes sociais que agora andava nas bocas de tantos manifestantes e oradores em comícios.

As lutas do passado, do presente e do futuro

Nem tudo são anacronismos e pelas fotografias captadas em diferentes momentos de festa ou protesto passam algumas reivindicações que, meio século depois, constatamos que persistem. Uma delas é a igualdade salarial entre homens e mulheres. A fotografia de Guy Le Querrec captada na fábrica Applied Magnetics, em Lisboa, em Julho de 1974, mostra o protesto das trabalhadoras junto a uma faixa onde se lê «Salário igual para trabalho igual». Cinquenta anos depois, ainda se luta pelo mesmo objectivo no país onde, de acordo com dados do ano passado, o ordenado ganho por uma mulher – contando com a remuneração base, os prémios e subsídios regulares — é, em média, 16% inferior ao de um homem. Outra reivindicação que continua por cumprir é a do direito à habitação. Consagrado na Constituição de 1976, por ele lutaram milhares de pessoas, quer no Parlamento, quer nas ruas, e em 2025 vemos esse direito esboroar-se por entre os preços impossíveis das casas – quer para arrendar, quer para comprar – e pelos baixos salários que não permitem fazer face ao custo da habitação e de todas as outras despesas básicas. Basta lembrar o grande desígnio da erradicação de barracas que ocupou vários anos de políticas governamentais e autárquicas no pós-25 de Abril e confrontá-lo com as notícias de hoje, onde constatamos que a construção de barracas está a aumentar por impossibilidade de assegurar o pagamento da habitação com o valor do salário.

Um passado presente

Venham Mais Cinco é, então, uma viagem ao passado recente, mas igualmente uma reflexão que se impõe sobre o presente e o futuro. Meio século será muito tempo na cronologia de cada pessoa, mas é um fogacho no tempo da História, pelo que boa parte dos temas que surgem nestas imagens de fotógrafos estrangeiros mantém a sua actualidade. Mesmo as imagens das independências africanas, da exigência do fim da Guerra Colonial ou do regresso dos retornados das ex-colónias não são apenas imagens do passado, uma vez que as diferentes camadas sociais, políticas e económicas que definiram essas realidades continuam a ter impacto no modo como vivemos em comunidade, no modo como nos governamos, no modo como nos relacionamos com a memória. E tudo isso é presente.

© Alain-Mingam / Gamma-Rapho, 1975

Como explica Sérgio Tréfaut, curador de Venham Mais Cinco, na folha de sala, a ideia desta exposição surgiu em 1993, um ano antes do vigésimo aniversário do 25 de Abril: «Venham Mais Cinco foi uma ideia que surgiu no Verão de 1993, quando Margarida Medeiros e Ana Soromenho propuseram que se fizesse uma grande exposição com as imagens dos fotógrafos estrangeiros que haviam retratado o processo revolucionário português. (…) Três décadas depois, a exposição vai abrir as suas portas. Entre o início da nossa pesquisa, no Outono de 1993, em Paris, e o seu recente desaparecimento, Margarida Medeiros tinha-se transformado numa das maiores especialistas de fotografia em Portugal, autora de livros de referência, curadora de exposições e responsável pela formação de várias gerações de estudantes. Esta exposição nasceu da nossa amizade.»  Está, assim, explicada a referência da ficha técnica, que indica Sérgio Tréfaut como curador, in memoriam Margarida Medeiros.

© Sebastião Salgado, 1975

Até ao próximo dia 24 de Agosto, Venham Mais Cinco está patente ao público, de forma gratuita, no espaço da antiga Lisnave, certeiramente situado na Avenida Aliança Povo MFA. É uma daquelas exposições sobre a qual é justo escrever que não se pode perder. Ainda assim, e porque a vida nem sempre se ajeita às coisas essenciais, quem não chegar a vê-la pode refugiar-se nas páginas do livro homónimo publicado pela Tinta da China, com edição de Sérgio Tréfaut. Lá dentro estão as imagens captadas por Alain Keller, Alain Mingam, Alécio de Andrade, Augusta Conchiglia, Benoît Gysembergh, Dominique Issermann, Fausto Giaccone, François Hers, Gérard Dufresne, Gilbert Uzan, Giorgio Piredda, Guy Le Querrec, Henri Bureau, Hervé Gloaguen, Jacques Haillot, Jean-Claude Francolon, Jean-Paul Miroglio, Jean-Paul Paireault, Jean Gaumy, José Sánchez Martínez, Michel Giniès, Michel Puech, Paola Agosti, Perry Kretz, Rob Mieremet, Sebastião Salgado, Serge July, Sylvain Julienne, Uliano Lucas e Vojta Dukát. As imagens que nos mostram como um dia fomos, o que conseguimos fazer e aquilo que sonhámos para o futuro.

→ cm-almada.pt

→ tintadachina.pt