Espelho Meu Andreia Brites 5 Março 2021

Para dormir
Teresa Cortez
GATAfunho

O álbum cartonado de pequena dimensão anuncia um livro para a primeira infância. O título sugere um ritual, uma canção de ninar, um ritmo cadenciado. Porém, o paratexto não esgota o objeto, bem pelo contrário. Abre a porta ao diálogo e ao desconcerto.

É sabido que a autora, Teresa Cortez, não segue um estilo de ilustração plana, de formas lineares e com predomínio de cores que as preenchem sem necessidade de contorno. Logo aqui se começa a rasgar a harmonia desse reconforto que é reconhecer, pela repetição do contacto visual, objetos, animais, personagens. Não que sejam mais realistas que as que encontramos nestas páginas.

Para dormir oferece aos leitores uma associação livre, lúdica e, aqui e ali, tendencialmente absurda, de elementos em que a lógica textual reside em começar a frase seguinte com o substantivo final da página dupla anterior. A travessia do mundo da comunicação para o onirísmo do sonho faz-se através desse encantamento sem determinismo, sem contexto. Tudo se inicia com uma menina que conta bichos. Para dormir? Pouco importa. O jogo cumprir-se-á no final e a sua circularidade desvendará o seu propósito: repetição e desvio, até ao infinito, sempre interrompível, sempre recuperável.

Parece denso mas não é. “Luca conta bichos// Os bichos calçam meias// As meias cheiram o pato” e assim sucessivamente. É evidente a subversão do texto que provoca sorrisos, surpresa e desejo de continuar, bem como uma inevitável descodificação metonímica entre sentidos literais e figurados.A acompanhá-la, a pujante ilustração que não poupa em rabiscos, formas imperfeitas e economia de cor. O lápis de cera e o de cor associados ao carimbo conferem à ilustração uma dinâmica que a aproxima do desenho infantil, experimental não apenas na técnica como no ângulo de composição dos elementos.

Contudo, é em boa parte na tipografia que reside o elemento congregador de texto e imagem: a disposição dos animais e objetos responde a movimentos circulares, rectilíneos, de fuga, encontro, aproximação e a organização dos carateres na formação das palavras destaca características da ação ou dos seus elementos. Esta segunda e mais profunda linha de leitura dialoga com o leitor impressivamente, imprimindo sensações e associações subjetivas. Todo o livro se apresenta como possibilidade e essa coerência subjaz à sua aparente aleatoriedade.

Podemos contar bichos ou carneiros, podemos virar o livro as vezes que entendermos, podemos procurar figuras, replicar posições, regozijar-nos com a evidência visual de que a palavra abraça nos remete para o abraço e que a frase “A lua faz a ponte” impressa em arco representa claramente a forma da própria ponte, que curiosamente bem pode assemelhar-se a um lençol insuflado pelo ar.

Para dormir, para sonhar, para crianças e adultos: uma invertida canção de ninar plena de ritmos e movimento.